Cerca de 200 mulher de Cabinda saíram às ruas para protestar contra o agravamento das condições de vida e os maus-tratos de que são vítimas por parte dos fiscais e dos agentes da Polícia Nacional (PN). As mamães quitandeiras contam que a vida está cada vez mais difícil e não se compreende que ainda fossem vítimas de maus-tratos e de extorsões por parte dos fiscais e dos agentes da PN.
Por José Marcos Mavungo (*)
“O que os fiscais e agentes da polícia fazem é muito triste. Quando chegam, pegam nos produtos dos populares e levam tudo. Como podemos sustentar os nossos filhos neste momento difícil”, disse a senhora Maria, uma das manifestantes.
O estopim da manifestação foram as extorsões e actos de violência protagonizados por fiscais e um grupo de agentes da PN, que, nos dias 23, 24 e 28 de Abril, invadiram o mercado do Buraco, na paragem do Yema, levando consigo muitos produtos dos populares. Organizadas de forma espontânea, as manifestantes marcharam do mercado de Buraco até à sede do Governo Provincial de Cabinda (GPC), passando pela Administração Municipal e pelo Palácio do Governo, que estava protegido por um forte dispositivo policial.
“No domingo, 23 de Abril, os fiscais e agentes da polícia vieram invadir o mercado e levaram consigo todas as nossas coisas. Apareceram também na segunda-feira, dia 24 de Abril, e levaram tudo. Hoje, dia 28 vieram de novo (…) Razão pela qual manifestamos até ao Palácio do Governo”, firmou a Senhora Isabel, uma das manifestantes.
O GPC tem vindo a proibir as mamães quitandeiras para não venderem na praça do Buraco, por achar que este lugar não oferece condições para a comercialização de produtos. Mas, não encontrando outro lugar para comercializar os seus produtos, os populares mantêm a ideia de continuar a vender na praça do Buraco.
“A praça do Buraco é de muito tempo. Desenrascamos aqui, muitos de nós sendo viúvas. Depois, chegaram outras pessoas que acabaram por ergueram lojas. E agora pedem para as pessoas da praça do Buraco não venderem mais. A praça de Cabassango está cheia. A praça de S. Pedro, também. Não temos outro lugar para vender. Por isso, vamos continuar a vender no Buraco até que o Governo termine a nova praça do Gika, onde iremos”, referiu a Senhora Isabel.
A presença policial não esvaziou o protesto em que as manifestantes denunciavam as difíceis condições de vida em Cabinda, queriam ver a Governadora e pediam ao GPC para resolver a situação do povo.
“O que nos leva a manifestar é o sofrimento. Os fiscais e os polícias nos incomodam, não há paz. Chegamos até à casa da Governadora. Quisemos ver Matilde da Lomba. O Governo deve resolver a situação do povo. Se as nossas reivindicações não forem satisfeitas, vamos continuar a manifestar ainda que entremos às pancadas com a PN”, gritavam as manifestantes.
Desde a nomeação da actual governadora, Aldina Matilde da Lomba Catembo, a deterioração das condições de vida em Cabinda atingiu níveis sem precedentes. O agravamento da situação social não poderia ter vindo em pior hora para Cabinda, cuja governação reduziu as populações autóctones a uma vida caótica, a uma pobreza abjecta, à dependência exótica, à indigência, com a mão sempre estendida nos dois Congos.
Reflexo do asfixiante contexto socioeconómico de dificuldades, é também notório nestes últimos anos em Cabinda o incremento da actividade tenebrosa dos fiscais e da polícia, que marca de forma particularmente trágica a vida das populações: a arbitrariedade e ausência de qualquer controlo da sua actuação; o “cabritismo”, pelo qual vivem do imposto directo (gasosa) que diariamente extorquem, pelas mais diferentes vias, aos cidadãos que precisam dos seus serviços; a corrupção na fiscalização de produtos nos mercados e nos processos judiciários, que não oferecem aos cidadãos garantias mínimas em matéria de isenção e de esclarecimento; etc..
Há mesmo populares, traumatizados por qualquer relação com os fiscais e a PN, que já preferem cair nas mãos dos bandidos com quem, argumentam, é mais fácil “negociar”.
“Nós pagamos etiquetas de 100 Kwanzas, mas mesmo assim os fiscais e os agentes da polícia nos cobram mais dinheiro (…) Tentamos dar-lhes 3.000 kwanzas pelas mercadorias, mas eles não aceitam, alegando ser pouco dinheiro. Além disso, somos presos de forma arbitrária, mesmo quando exibimos o Bilhete de Identidade. Preferimos cair nas mãos de bandidos que negociar com um fiscal ou agente da polícia. Não negamos aos fiscais e à polícia a fazer o seu trabalho, mas o que exigimos é a manutenção da ordem pública”, dizia uma das manifestantes.
Havendo anarquia e corrupção na governação e debilidade nos serviços administrativos, as populações vivem sobre grandes pesadelos: falta de água, luz, gás, combustível e insegurança alimentar; instabilidade social e laboral (salários muito baixos e elevado índice de desemprego); acumulação de lixo e buracos na via pública e deterioração ambiental. Os doentes nos hospitais ficam horas a fio com os mesmos curativos já então muito deficientes, sofrendo o suplício do incremento de várias doenças, entre as quais a cólera, a malária, a febre tifóide e a hipertensão, e da falta de medicamentos e de assistência médica eficiente.
Nestes últimos 5 anos, a morte em Cabinda é tão horrível quanto nos tempos da Idade Média em que as populações eram vítimas de muita peste e não havia terapia nem médicos competentes ou remédios para tratar os doentes. Hoje, a elevada taxa de mortalidade, em especial infantil, faz com que as morgues do Hospital Central de Cabinda (HCC) e de Alzira da Fonseca estejam superlotadas.
Por isso, diante desta situação, as manifestantes queriam ver a Governadora Aldina Matilde da Lomba Catembo, que, fechando-se no seu “bunker”, colocou um forte dispositivo policial para não as receber no Palácio de Governo. Já não mandou prender nem reprimir, estratégia eleitoral obriga.
Assim, ao chegarem diante da sede do GPC, as manifestantes puseram termo à manifestação. Horas depois da manifestação, as autoridades do GPC reuniram-se com 20 manifestantes. No comunicado difundido depois do encontro, o GPC diz ter orientado o Administrador do Município de Cabinda, Arnaldo Puati Tomás, para disponibilizar um terreno no bairro a “Luta Continua” ao longo da rua 40, onde as mamães quitandeiras iriam vender temporariamente os seus produtos, enquanto se aguarda a conclusão dos trabalhos de construção da nova praça no Bairro Gika.
A situação exige limites na actuação dos agentes fiscais e da PN
Saber impor limites na actuação dos elementos da fiscalização e da ordem pública é fundamental para a estabilidade social e a melhoria das condições de vida das populações.
Fenómenos como “a corrupção, o abuso de poder e as detenções arbitrárias” a que os fiscais e os agentes da polícia passam agarradas todos os dias e as frequentes extorsões de bens a pacatos cidadãos dizem da necessidade urgente de introduzir regras na fiscalização e na administração da ordem pública. Pode ser necessário um novo perfil dos fiscais e agentes da ordem pública, mas a questão reflecte também ausência de limites na sua actuação.
É necessário valorizar e potenciar os fiscais e os elementos da ordem pública, como membros de instituições dignas e privilegiados para a edificação de um Estado de Direito Democrático e o treino concreto do autodomínio e da autodisciplina nas várias dimensões da vida social da pessoa, muito concretamente, no respeito pelas regras de um são convívio, que trave a desordem e a desestabilização, cujos danos sociais têm projecção na actual situação asfixiante da vida dos membros da comunidade cabindense.
A corrupção, a falta de integridade e transparência, que acima fizemos referência, constituem estruturas de comportamento que só pioram a então existente vida difícil dos cidadãos: a “gasosa” priva o Estado de recursos para investimentos em sectores chave; e as extorsões de bens aos cidadãos é uma forma por excelência de desinvestimento, ao descapitalizar cidadãos com iniciativas em contexto de crise.
Não é de todo uma distracção insignificante, que acontece naturalmente em Angola, mais precisamente em Cabinda, são acções planeadas, consentidas e premeditadas, que reflectem também a crise de valores e ausência de limites, em tempo oportuno.
Têm-se multiplicado nestes últimos tempos, um pouco por toda a parte, os documentos sobre a deontologia policial, de que são exemplos significativos, no plano internacional, a “Declaração sobre a Polícia”, do Conselho da Europa, e o “Código de comportamento dos funcionários encarregados de fazer cumprir a lei”, das Nações Unidas.
Ter a ousadia de impor limites, a nível da actuação dos elementos da fiscalização e da ordem pública, torna-se hoje uma necessidade inadiável.
(*) Activista dos Direitos Humanos